Relatório da Comissão Externa da Feminização da Pobreza

30/06/2004 - 11:47  

No atual processo de globalização da economia, em que os países têm seu desenvolvimento econômico condicionado aos ajustes estruturais orientados pelas instituições financeiras unilaterais e pelo mercado de capitais, a concentração de renda tende a aumentar consideravelmente, agravando as situações de desigualdade social e perpetuando mecanismos de discriminação e exclusão de amplos segmentos da população.
No Brasil, em decorrência, as mulheres, os afrodescendentes e os indígenas - segmentos historicamente excluídos e discriminados - sofrem mais profunda e acentuadamente as conseqüências dessas desigualdades, pois sobre eles incide a superposição de diversos tipos de vulnerabilidade.
As próprias bases fundantes da elite da nossa sociedade e a construção do Estado brasileiro têm suas raízes no modelo patriarcal, escravocrata e patrimonialista.
Sendo relativamente recente na história da humanidade o reconhecimento das mulheres, da população afrodescendente e da indígena do estatuto de sujeito de direitos, a igualdade formal defendida por ordenamentos constitucionais é ainda norma programática sem realização plena.
A ficção jurídica da igualdade de direitos é cotidianamente falseada e destituída de seu poder normativo por meio de mecanismos que se nutrem mutuamente: por um lado, pela naturalização e aceitação cultural de preconceitos e, por outro, pela reprodução de mecanismos informais e sociais de inferiorização e de tratamento discriminatório, com a conseqüente manutenção de privilégios para alguns. Enfim, a cultura da discriminação está presente em todas as esferas, públicas ou privadas. A despeito de avanços e conquistas provenientes da organização do movimento feminista, dos movimentos de mulheres e da construção de instrumentos internacionais de proteção, as desigualdades de gênero(têm-se aprofundado como conseqüência das transformações econômicas e sociais mundiais, implementadas continuamente por décadas cuja tradução se dá no enxugamento, desestruturação e diminuição de responsabilidades sociais do Estado.

As mulheres enquanto grupo vulnerável ou a feminização da pobreza

São as mulheres, e mais duramente as mulheres negras, mais atingidas pelo empobrecimento.
O mencionado desmonte da estrutura pública precipitou, tanto a progressiva ausência do Estado em setores como educação, saúde, previdência social etc., quanto a inexistência de políticas explícitas de promoção da igualdade de oportunidades entre homens e mulheres. Redundou, inclusive, na insuficiência de mecanismos fiscalizadores capazes de detectar e punir a discriminação por gênero e raça. Verifica-se a total ausência do Estado em políticas estruturais que possibilitem a superação da condição de vulnerabilidade social tanto quanto propiciem a construção da autonomia e da emancipação econômica das mulheres, tais como creches e educação infantil, lavanderias comunitárias, profissionalização, políticas de assistência social, reforma agrária, cultura, além das já citadas anteriormente, etc.
Convém salientar a importância de que seja reconhecido, por parte dos gestores públicos, o fato de que o impacto causado pela adoção de políticas - determinado modelo macroeconômico, a implementação de reformas, o aumento de concentração de renda, o agravamento de desigualdades socioeconômicas, bem como a precarização das condições de vida e das relações de trabalho - atinge de modo diverso as mulheres, em se comparando com os homens e a forma como percebem e sofrem tais transformações. Ou seja, até mesmo a adoção de uma política universal pode esconder a perpetuação de diversas discriminações e desigualdades, inclusive, acentuando-as.
No cotidiano, os desdobramentos de medidas econômicas e sociais são vividos de forma bastante diferenciada, de tal modo que essas especificidades devem ser levadas em conta quando da formulação de políticas públicas, sob o risco de o Estado cegar-se à mais da metade da população.
Observando a partir do recorte racial, constata-se que a população afrodescendente, assim como as mulheres - mais ainda as mulheres negras e indígenas -, são os segmentos que tiveram impacto negativo frente aos ajustes estruturais, tendo sido agravada sua situação de acesso a postos de trabalho e oportunidades de emprego.
Do desmonte das políticas sociais e da ausência do Estado, advém para as mulheres o aumento da carga de trabalho doméstico não remunerado - invisível, não valorizado pela previdência nem protegido como atividade de reprodução social -, responsabilidades essas antes devidas ao poder público. Não havendo equipamentos como creches, hospitais, centros de convivência para idosos e crianças, lavanderias e restaurantes comunitários, serão as mulheres que absorverão tais tarefas (cuidar de crianças, idosos, doentes, etc). E, essas horas que as mulheres dedicarão ao trabalho reprodutivo - não remunerado - como conseqüência, subtrairão significativamente as suas possibilidades no mercado de trabalho, obstaculizando o pleno exercício de suas capacidades produtivas.
Indo mais adiante, pode-se também afirmar que para investir na autonomia e emancipação econômica das mulheres, com vistas a combater a desigualdade de gênero e compreendendo a necessidade de equipamentos sociais, será fundamental atentar para outras peculiaridades do cotidiano das mulheres em relação ao trabalho - de forma que não seja esse mais um prejuízo e fator de desigualdade de condições entre mulheres e homens -, tais como a observância à adequação de horários e distância entre o trabalho e a creche, transporte coletivo acessível, iluminação pública, etc.
Ao tratar homens e mulheres igualmente não significa que as desigualdades serão superadas. No caso das relações entre homens e mulheres e sua inserção no mercado de trabalho, constata-se, por exemplo, que os homens têm maior acesso a emprego e renda que as mulheres. Isso decorre do fato de os homens terem mais oportunidades de capacitação e profissionalização enquanto as mulheres são responsabilizadas por todo o trabalho doméstico, dificultando sua capacitação e profissionalização.1
Se considerar a forma como são estabelecidas as relações de gênero, constata-se que, em geral, homens e mulheres não têm oportunidades iguais. Para que se possa falar em democracia de fato, é necessário portanto, que a sociedade seja capaz de se debruçar por sobre as relações de gênero e, aprimorar mecanismos de erradicação e superação dessas desigualdades. Um dos pontos importantes é a promoção de maior participação das mulheres nas esferas de decisão, de forma que a perspectiva de gênero esteja incorporada na tomada de decisões.
Não ao acaso as mulheres estão insuficientemente representadas em todos os níveis dos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, reproduzindo uma razão inversamente proporcional. A concentração de poder, unilateral do ponto de vista de gênero, influi em muitos âmbitos das vidas pública e privada. Por conta dessa baixa representação e da incompreensão desses conceitos, muitas vezes se confundem políticas de gênero com políticas voltadas para as mulheres.
Da mesma forma, não é por acaso que mulheres percebem salários menores aos dos homens pelo desempenho das mesmas funções. A desigualdade no mercado de trabalho está sustentada na visão corrente em nossa sociedade de que a renda das mulheres é meramente complementar.

"(...) Há o componente ideológico que é causa e justificativa da pobreza. É a responsabilização das pessoas pela sua condição de pobreza, a humilhação o desrespeito, o racismo os preconceitos contra as mães solteiras ou separadas, as índias, as portadoras de deficiências, as prostitutas as lésbicas. É a redução das pessoas como coisas que servem, a permanência da separação entre a casa grande e a senzala. É a exposição das pessoas em situação de violência cotidiana. É o machismo que impede as mulheres de crescer e realizar sua autonomia política e social (...)" depoimento de Regina...,do sindicato das empregadas domesticas da região de Campinas (SP) na audiência publica de São Paulo, capital.
Desde a Conferência Internacional de Beijing, em 1995, patrocinada pelas Nações Unidas, foram criados índices de paridade de gênero que permitiram monitorar de maneira mais acurada informações sobre desigualdade de gênero com relevância para a formulação e implementação de políticas públicas. Assim, dados do último censo do IBGE permitem traçar um retrato acurado da situação social e econômica da mulher brasileira. Informações importantes permitem-nos inferir a situação desfavorável em que elas ainda se encontram.
Com respeito ao mercado de trabalho, os dados são gritantes. Comparando taxas de escolaridade entre homens e mulheres descobrimos uma tendência curiosa. Mesmo em uma população que apresenta média de escolaridade baixa, as mulheres apresentam média superior às dos homens: 6,4 anos de estudo paras mulheres, comparados com 6,1 anos de estudo para os homens.
Quando analisamos, por exemplo, os anos de escolaridade da população urbana ocupada, a diferença entre homens e mulheres aumenta em favor das mulheres: 8,2 anos de estudo para as mulheres contra 7,3 para os homens. A mesma tendência de superioridade das mulheres se reflete no meio rural, onde a média de escolaridade da população empregada é de 3,6 anos de estudo para as mulheres e 3,2 para os homens.
Ainda nos níveis mais elevados de escolaridade, a tendência se mantém. Segundo a PNAD de 2002, as mulheres ocupadas com mais de 11 anos de escolaridade representavam 37,1% da população feminina total contra 26,6% dos homens.
Essa superioridade em anos de estudo não se reflete, entretanto, no rendimento médio alcançado pelas mulheres em seus empregos. Nesse ponto, a história se inverte. Segundo o IBGE, o rendimento médio mensal para trabalhadores do sexo masculino é de R$719,90, enquanto que o de mulheres trabalhadoras é de somente R$505,90, isto se agrava e muito quando se trata das populações afrodecendente e indígena, principalmente às mulheres.
Mesmo nos níveis elevados de escolaridade a tendência se mantém. Entre a população ativa com mais de 11 anos de estudo o rendimento médio dos salários femininos é de R$829,20 enquanto que o rendimento médio dos homens é de R$1416,30.
Com efeito, percebe-se que a população feminina ocupada concentra-se nas classes com renda até 2 salários mínimos. Entre os homens, a proporção de ocupados com rendas neste patamar é de 55,1%, enquanto que entre as mulheres essa proporção alcança 71,3% .
Por outro lado, constata-se que 15,5% dos homens têm rendimento acima de 5 salários mínimos, enquanto apenas 9,2% das mulheres se situam nesse nível. Tais dados demonstram que as mulheres, recebem remuneração do trabalho marcadamente inferior aos homens, algo que se repete nas várias regiões do Brasil.
Além disso, os homens apresentam taxas de ocupação maiores que as das mulheres em todos os grupos etários. Dados do DIEESE, desagregados por região metropolitana, confirmam esta tendência. A título de exemplo, na grande São Paulo a população economicamente ativa representava, em 2003, 54,5% da população masculina e 45,7% da população feminina.
Essas tendências se acentuam nas regiões Norte e Nordeste. Em Recife, por exemplo, a população economicamente ativa representava, em 2003, 68,5% da população masculina e 53,1% da população feminina. Embora o contingente feminino da força de trabalho seja maior, em termos proporcionais, do que em São Paulo, a diferença entre homens e mulheres é mais acentuada, como podemos ver pelas porcentagens referidas.
Mesmo entre a população economicamente ativa, diferenças nos tipos de ocupação são marcantes quando levadas em consideração gênero e raça. O contingente de mulheres empregadas em serviços domésticos ou em atividades não remuneradas é fortemente superior ao dos homens (19% contra 11% no primeiro caso, e 6% contra 1% no segundo caso). No setor doméstico, é notória a precariedade e a exiguidade de direitos laborais, o que acentua as desvantagens femininas em termos de rendimentos e proteção social. Do total de mulheres empregadas no setor doméstico, em torno de 76% trabalham sem carteira assinada.

A informalidade e a precarização
A proporção de mulheres que se concentram nas ocupações precárias (61%) é 13% superior à proporção de homens nessa mesma situação (54%).
A proporção de negros (65,3%) é 29% superior à proporção de brancos nessa mesma situação (50,4%).
No caso das mulheres negras essa proporção é de 71% e 41% delas se concentram nas ocupações mais precárias e desprotegidas do mercado de trabalho (OIT). A tendência maior da mão de obra feminina ao desemprego é acentuada por variáveis de raça. A mulher negra apresenta uma desvantagem marcante neste aspecto, com 13,6 % de desemprego, em relação aos 10% das mulheres brancas. Essa desvantagem se agudiza no caso das mulheres jovens negras, que apresentam taxas alarmantes de desemprego de 25%. Além disso, no que se refere ao emprego doméstico, as mulheres negra são maioria. Por essas razões, alcançam somente 39% dos rendimentos dos homens brancos.

"Chefia de família" e pobreza
Outra questão que devemos observar é a situação das mulheres "chefes de família". O crescimento do número de famílias chefiadas por mulheres tem atingido tanto mulheres pobres quanto não pobres. No ano de 1992, eram 19,3% dos domicílios, percentual que saltou, em 2002, para 32,1% dos domicílios (46,4% na região norte e 43,4% na região sul, nas áreas urbanas). 87,3% das mulheres chefes de família não tinham esposo, cônjuge ou companheiro. No caso dos homens, apenas 11,1% estava nesta mesma situação.
O aumento da responsabilidade feminina pelas famílias pode estar refletindo uma crescente participação da mulher nas decisões de âmbito familiar e no próprio sustento da família. Ainda assim, famílias cuja pessoa de referência é uma mulher com filhos apresenta rendimentos inferiores à renda familiar média per capita. Situação que nos remete necessariamente a pensar e agir por meio de políticas publicas sociais, visto que essas mulheres não têm a mesma oportunidade de gerar renda adicional a não ser a custa do trabalho dos filhos e de outros parentes.
A respeito disso é importante fazer um comentário, de modo a evitar o risco de atribuir às mulheres a responsabilidade por sua própria pobreza, ou de associar a pobreza às chamadas "famílias incompletas", ao abordar o tema de forma eivada de preconceitos.
"Trata-se do fato de as mulheres em famílias monoparentais, que viriam de família constituída por cônjuges, ou seja, que foram esposas, empobrecem não porque se tornam chefe de família ou porque deixaram de ter um provedor, mas, com a maior probabilidade, porque foram esposas antes e, assim, não tiveram as mesmas oportunidades dos homens, casados ou vivendo sós, ou das mulheres sós, de investir em carreira, de socializar-se com as regras do e no mercado. Por outro lado, os diferenciais de rendimentos entre mulheres e homens chefes de família de igual escolaridade e idade (...) são negativos para as mulheres , indicando que independentemente do estado conjugal e da situação quanto à maternidade, as mulheres seriam vistas como esposa e mãe no mercado. Portanto, mesmo quando únicas provedoras do núcleo familiar, teriam seu rendimento considerado como complementar."
Raça e gênero também se imiscuem nesse caso para acentuar diferenças sociais. Em 1998, de acordo com a PNAD do IBGE, a proporção de famílias cujo chefe era uma mulher negra, mas com filhos, era de 20,7%, valor que cai para 18,6% para as pardas e 15,1% para as brancas.

Audiências públicas
Com vistas a aferir a situação social da mulher no Brasil, a Comissão Externa da Feminização da Pobreza realizou audiências públicas na Câmara dos Deputados e nos estados da Federação, onde foram discutidas com representantes de movimentos sociais e estudiosos do assunto as várias dimensões do problema da pobreza que afetam as mulheres. Foram realizadas audiências públicas nas regiões Sul (Florianópolis), Sudeste (São Paulo), Centro-Oeste (Cuiabá), Norte (Belém) e Nordeste (Salvador) de modo a captar a dinâmica regional das desigualdades de gênero.
Em Brasília, em 9 de dezembro de 2003, na abertura dos trabalhos desta Comissão, Lena Lavinas, pesquisadora da UERJ, nos advertia quanto ao risco de reforçar o estigma da responsabilização das mulheres pela sua situação de vulnerabilidade. Apontou que as mulheres, em especial as mulheres negras, constituem um grupo vulnerável à pobreza e à desigualdade, de modo diferenciado do conjunto da sociedade.
Em audiência técnica com institutos de pesquisas e pesquisadores de universidades pudemos ouvir as avaliações quanto à conceituação de pobreza e de desigualdade considerados na realização das pesquisas e avaliações.
Lúcia Garcia, do Departamento Intersindical de Estudos Estatísticos e Socio-Econômicos (DIEESE), nos revelou dados pesquisados principalmente na área de trabalho daquela instituição.
Marcelo Medeiros, representante do Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas (IPEA), no instituto de investigação da pobreza e das desigualdades da América Latina.
Neuza, representante da organização das mulheres negras de Campinas-SP, declarou que em nosso país o machismo e o racismo são irmãos gêmeos da pobreza e da desigualdade.
A professora Neuma Aguiar, da UFMG, trouxe à tona o "uso do tempo diário dos homens e mulheres", mostrando o quanto cada um usa do seu tempo diário no trabalho remunerado, no trabalho doméstico, no cuidado dos filhos e no lazer, por exemplo. Consideramos esta como uma questão importante a ser incorporada em políticas públicas de combate à desigualdade de gênero e de promoção da emancipação das mulheres.

Audiências públicas regionais

Audiência Pública da Região Sul
A audiência pública regional da região Sul (Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Paraná) foi realizada em Florianópolis, SC, sob a coordenação desta relatora, com apoio da Assembléia Legislativa do Estado e a presença de ativistas do movimento de mulheres, pesquisadoras e estudiosas do tema. Foi apresentado um diagnóstico da situação das mulheres dos três estados da região.
Foram utilizadas as fontes de dados Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), Departamento Intersindical de Estudos Estatísticos e Socio-Econômicos (DIEESE), Instituto Paranaense de Desenvolvimento Econômico e Social (IPARDES) e Fundação de Economia e Estatística (FEE) com as contribuições da Dra. Juçara Reis Prá, da professora Cácia Carloto, da Universidade Estadual de Londrina (UEL), da professora Daniela Manfrinni, da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e da deputada estadual Luciana Rafagni, que representou a Assembléia Legislativa do Paraná.
As mulheres ativistas e integrantes de organizações da sociedade civil, movimentos sociais, cooperativas de geração de renda, da agricultura familiar e dos assentamentos da reforma agrária apresentaram relatos a respeito da situação em que vivem.

Audiência Pública da Região Sudeste
Sob a coordenação da deputada federal Iara Bernardi, esta audiência pública contou com a presença de organizações do movimento de mulheres de São Paulo e região metropolitana. Recebeu o apoio e a participação da Marcha Mundial das Mulheres Contra a Pobreza e a Violência.
Paula Montagner, pesquisadora de gênero da Fundação SEADE, mostrou dados de pobreza e discriminação de uma das maiores metrópoles do mundo.
O movimento de mulheres e organizações feministas representados por suas lideranças, mulheres negras, sem teto, empregadas domésticas, sem teto, sem terras, relataram suas situações e suas propostas para mudanças estruturais, no país.

Audiência Pública da Região Centro-Oeste
Realizada em Cuiabá - MT, com o apoio da Assembléia Legislativa do Estado do Mato Grosso, sob a coordenação das deputadas Vera Araújo, Celcita Pinheiro e desta relatora, a audiência analisou a situação das mulheres daquela região.

Audiência Pública da Região Nordeste
Sob a coordenação das deputadas Alice Portugal e Almerinda de Carvalho, dezenas de ativistas sociais apontaram questões fundamentais para alterar a situação das mulheres daquela região, especificamente do estado da Bahia. A realização da audiência pública recebeu apoio da Câmara de Vereadores de Salvador.

Audiência Pública da Região Norte
Mais de uma centena de mulheres de vários estados do norte debateram pôr mais de 4 horas a situação das mulheres nortistas, na audiência pública realizada em Belém - PA. A audiência pública contou com o apoio das entidades do sociedade civil, principalmente da Fase/Amazônia, movimento de mulheres e da Assembléia Legislativa do Pará, por meio das deputadas estaduais Regina Barata, Sandra Batista, Ana Cunha e Araceli Lemos.
Lá estavam as mulheres indígenas, as pequenas agricultoras, quilombolas, pescadoras artesanais, estrativistas, parteiras, negras, sindicalistas, profissionais do sexo, etc.
Desta comissão externa, estiveram presentes, além desta relatora, a deputada Ann Pontes e a assessoria da deputada Janete Capiberibe.

Constatações das audiências regionais
Questões como a ausência total ou a precariedade de políticas públicas sociais para as mulheres contribui para agravar drasticamente a pobreza e a desigualdade em todas as regiões do Brasil.
Na região Norte, as distâncias geográficas contribuem para as condições indignas de vida das mulheres e seu afastamento dos já precários e insuficientes serviços públicos de um Estado despreparado para lidar com as diversidades cultural e regional.
A falta de informação e o grande índice de desvio de recursos públicos destinados principalmente às áreas indígenas agravam ainda mais a situação de pobreza, desigualdade e sofrimento. As violências física, sexual e psicológica causadas pelos conflitos fundiários nessas regiões são constantes, segundo relato das mulheres presentes na audiência pública.
A ausência de uma reforma agrária que dê condições de dignidade no campo continua provocando a migração das mulheres por não perceberem qualquer perspectiva de construção da sua cidadania na atividade agrícola, no meio rural e na conjuntura agrária.
Em decorrência da burocracia do sistema de financiamento, dos entraves tecnocráticos, da desinformação, as mulheres agricultoras têm enfrentado dificuldades de acesso ao crédito.
Os relatos das mulheres indígenas denunciaram a ausência do respeito coletivo às diferenças étnicas e a falta de acesso às políticas sociais, principalmente na questão de sua saúde.
O trabalho doméstico infantil, realizado principalmente pelas meninas afrodescendentes se acentua de maneira dramática nas regiões Norte e Nordeste, constatado em todo o Brasil pela Organização Internacional do Trabalho (OIT), teve sua denúncia corroborada pelos relatos apresentados na audiências públicas. Os dados da PNAD, IBGE, apontam que, durante a década de 90, na região Norte, as meninas afrodescendentes são 68 a 73% das massa de trabalhadores infantis domésticos, e no nordeste de 74 a 80%.
Atitudes e cultura discriminatórias em decorrência do gênero e da raça têm sido registradas historicamente, permanecendo até agora como eixos estruturantes das demais desigualdades e dos padrões de exclusão social, econômica, política e cultural, no Brasil.
A violência promovida pelo cultivo e tráfico de drogas tem afetado principalmente as mulheres que vivem nas periferias das regiões metropolitanas, fazendo-se necessárias medidas urgentes nessa questão.
As condições de sub-habitação das mulheres mais empobrecidas pobres, entre outras, é ponto crucial estruturação familiar e inclusão social. Estudos sobre o déficit habitacional, no Brasil, mostram que mais de 80% das pessoas sem moradia recebem abaixo de três salários mínimos, sendo vetado seu acesso às linhas normais de crédito. Nesse contingente, com certeza, encontram-se, principalmente, as mulheres e a população afrodescendente.
Os limites impostos pela lei de responsabilidade fiscal têm sido utilizados como argumentos pelos gestores públicos para justificar a não implantação de políticas públicas sociais. Dessa forma, são reduzidas ao mínimo as possibilidades de fortalecimento das políticas locais de retaguarda para as mulheres, principalmente para as chefes de família e as afrodescendentes.
Os dados existentes para análise das situações de vulnerabilidade das mulheres são ainda precários, por estarem concentrados nas regiões metropolitanas, sendo quase inexistentes nas áreas rurais, indígenas e quilombolas, segundo avaliação de especialistas. Quando se trata de analisar a pobreza feminina é necessário uma "garimpagem" de dados de diversos setores que trabalham com pesquisa.

Conclusões
Sem ter a pretensão de esgotar o debate sobre este tema tão importante para a sociedade brasileira e considerando as graves distorções apontadas pelo trabalho até aqui realizado por esta comissão, acreditamos que o Parlamento brasileiro assume a sua missão de fortalecimento da democracia e da cidadania, incorporando temas que dizem respeito à maioria da sociedade, como a pobreza e as desigualdades.
Assim sendo, para contribuir com este processo que consideramos em aberto, recomendamos a mobilização em torno de projetos e programas que tenham implicações positivas na redução das condições sociais desfavoráveis ao pleno desenvolvimento das mulheres e de sua capacidade como cidadãs ativas em nosso processo econômico, político, social.

Recomendações

Trabalho doméstico
Que o Parlamento, o Poder Executivo e setores organizados do movimento de mulheres promovam ações para ampliar a cidadania das mulheres e superar as desigualdades (tais quais campanhas institucionais pela valorização, reconhecimento e democratização do trabalho doméstico, visando a conscientização da população acerca da importância dessa modalidade de trabalho para o conjunto da sociedade).
Para inclusão social das mulheres donas de casa de baixa renda no sistema de assistência social, indicamos um amplo debate em torno da PEC 385/ 2001 que inclui milhares de donas de casa no sistema de proteção social de 1 salário mínimo, proposta esta parcialmente incorporada pela PEC 227/2004, denominada "PEC paralela".

Emprego doméstico
Propomos a criação de uma Comissão Especial para efetuar estudo e emitir parecer sobre as proposições que dispõem sobre trabalho/emprego doméstico em tramitação nesta Casa. A dispersão dessa discussão pode ser lido como indício de esgarçamento da pressão social em torno da questão. A criação de uma comissão especial galvanizaria a atenção pública para o assunto, bem como forneceria a oportunidade de uma discussão mais ampla e profunda de suas implicações e principalmente a resolução desta distorção que acentua em muito a pobreza e desigualdade em uma parte considerável das mulheres trabalhadoras.
Indicamos a aprovação do projeto de lei 1626/1989, de autoria da ex-Deputada Benedita da Silva, de modo a equiparar o trabalho doméstico com os demais empregados formais. Com efeito, não são aceitáveis argumentos que defendem a manutenção do status subalterno dos empregados domésticos. Tal aprovação teria impacto imediato na vida das mulheres as quais são mão de obra altamente concentrada neste serviço. O projeto encontra-se em plenário para ser votado.

Trabalho infantil doméstico
Apoio e efetiva participação nas campanhas contra o trabalho infantil domestico.
Criação de um disque denúncia contra o trabalho infantil doméstico, com a participação dos Ministérios da Justiça, do Trabalho e em parceria com o Ministério Público do Trabalho.

Questão agrária
A efetiva realização da reforma agraria com condições de sustentabilidade e de qualidade de vida para as famílias, acesso a saúde, assistência técnica e educação de acordo com a realidade do campo.
Permanência no sistema previdenciário e ampliação da seguridade social para agricultores da economia familiar e extensão desses direitos para outros setores que se encontram descobertos, tais como pescadoras artesanais, quebradeiras de coco, extrativistas, etc.
Acesso a micro crédito para as mulheres pequenas agricultoras, independentemente de crédito concedido ao esposo, companheiro ou cônjuge, com vistas à autonomia e emancipação econômica.
A realização de um censo quilombola, cujos dados deverão nortear a formulação das políticas públicas para essa população, com as preocupações necessárias com o direito ao acesso à terra, a preservação da cultura, etc.
Garantia de acesso aos recursos naturais dos quais sobrevivem as populações extrativistas, tais como quebradeiras de coco, coletoras de castanhas, etc.

Crédito
Objetivando a superação da situação de vulnerabilidade social assim como a autonomia e emancipação econômica das mulheres Propomos a criação de linhas de crédito dirigidas às mulheres de baixa renda, urbanas ou rurais, cooperativadas, autônomas/informais ou mini e pequenas empreendedoras, assegurada a capacitação e assistência técnica, bem como criação de entrepostos para aquisição de matéria-prima, para venda de produtos artesanais ou rurais.
Criação de Programa, através do Poder Executivo Federal, em parceria com estados e municípios para fomentar associações e cooperativas de geração de renda para as mulheres.

Equipamentos sociais de retaguarda da autonomia das mulheres
Indicamos pela aprovação da PEC Nº 105/2002 de autoria da deputada Janete Capiberibe, que insere novos parágrafos ao art. 212 da CF, de modo a instituir fundos municipais para o atendimento a crianças de até três anos de idade. O apoio estatal à primeira infância é fator fundamental de liberação da mulher da opressiva jornada doméstica que tem reflexos negativos sobre a renda feminina, sua produtividade e capacidade de inserção social.
Implantação de turno integral do ensino fundamental e médio na rede pública, gerando mais segurança para crianças e adolescentes e ampliando as possibilidades de autonomia para as mulheres.
Alfabetização, capacitação e profissionalização para as mulheres considerando a diversidade culturais, regionais e de situação econômica, por exemplo: quilombolas, indígenas, ribeirinhas, camponesas, etc.

Reconhecimento do trabalho das parteiras tradicionais
É notória no Brasil a ausência de assistência pré-natal a mulheres, fator agravante de nossa mortalidade infantil. Instituições tradicionais, como as parteiras, tem suprido essa deficiência de nossas políticas sociais. O Projeto de Lei Nº 2354/2003, de autoria da deputada Janete Capiberibe vem regulamentar essa profissão que tantos serviços prestou às mulheres pobres e desassistidas.

Questão urbana e justiça social
O PLC 36/2004 de iniciativa popular, que institui o Fundo Nacional de Habitação Popular, votado pela Câmara dos Deputados e hoje no Senado Federal, cumprirá um papel decisivo na garantia do acesso à moradia, direito inscrito na Constituição Federal.
Garantia de programas habitacionais que prevejam cotas de moradias para mulheres chefes de família e que garantam a infra-estrutura necessária de equipamentos sociais e serviços públicos como creches, lavanderias comunitárias, restaurantes populares, áreas de lazer, postos de saúde, escolas de turno integral, etc.

Proteção ao trabalho informal
É de fundamental importância a aprovação e a regulamentação da PEC 227/2004 que estabelece medidas importantes para a proteção do trabalho informal, majoritariamente composto por mulheres e afrodescendentes e onde se encontra mais da metade da PEA brasileira.
Reconhecer, regulamentar e regularizar as profissões de artesã, agente comunitário/a de saúde, trabalhadora autônoma da coleta, reciclagem e revenda de lixo, parteira tradicional (já indicado pelo PL 2354/03).

Orçamento público com perspectiva de gênero e raça
Que o Governo, em todos seus ministérios e secretarias, incorpore em todos os programas e ações a perspectiva de gênero e raça, contribuindo assim de forma definitiva para a superação da pobreza e das desigualdades.

SPM e SEPPIR
Finalizando, não podemos deixar de reconhecer os esforços da Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres e da Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial para a construção da transversalidade de gênero e raça nas políticas públicas, bem como a formulação de programas destinados as mulheres. Entretanto, não nos conformamos com a precariedade de suas estruturas e os recursos destinados.

Bancada Feminina
A constituição da Bancada Feminina foi um marco decisivo na construção de um pacto acima dos interesses partidários e regionais e pela sua capacidade de articulação de projetos de fortalecimento à cidadania das mulheres brasileiras.

Comissão Especial do Ano da Mulher
A pauta de debates proposta a esta casa pela Comissão do Ano da Mulher, veio fortalecer a visibilidade tão necessária para a conquista da cidadania das mulheres, colocando as questões de gênero na agenda do parlamento brasileiro.

(A expressão "gênero" refere-se aos papéis, responsabilidades e atribuições sociais que são aprendidos ou adquiridos por homens e mulheres durante seu processo de socialização como membros de uma comunidade. Ao contrário da palavra "sexo", que se refere às características e diferenças biológicas e é universal, o gênero varia conforme os diferentes momentos históricos e as diferentes culturas. Desigualdade de gênero, portanto, diz respeito à relação de diferença de papéis atribuídos e desempenhados por homens e mulheres na sociedade - UNIFEM).

1 MATTOS, Janaína Valéria. Acesso das Mulheres a Emprego e Renda
2 CASTRO, Mary Garcia. "Feminização da pobreza" em cenário neoliberal (mimeo) 1999

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