Direitos Humanos

Como funciona uma Comissão da Verdade

O Congresso aprovou no final de 2011 a lei que determina a criação da Comissão Nacional da Verdade para apurar graves violações dos direitos humanos que não foram reconhecidas pela história oficial brasileira. Veja o que foi apurado em comissões semelhantes na Argentina, no Peru e na África do Sul.

11/05/2012 - 12:14  

Uma comissão da verdade funciona de forma distinta de um tribunal de justiça. No processo penal, o ator principal do processo é o acusado. Todo o trabalho da corte judicial é para determinar se a pessoa cometeu um crime e estabelecer uma pena em caso de condenação.

Já numa comissão da verdade o centro da atenção é a vítima que dá seu testemunho e compartilha sua experiência do passado. Com o direito de rever a memória histórica, a comissão tende a provocar forte impacto emocional junto ao público.

Essa é a experiência que o sociólogo peruano Eduardo Gonzalez Cueva acumulou quando integrou a Comissão da Verdade criada no Peru em 2001, após o fim do conflito com o grupo terrorista Sendero Luminoso. A comissão peruana teve duração de dois anos.

Cueva, que esteve recentemente no Brasil, adverte que a comissão da verdade só terá sucesso se conseguir mobilizar as vítimas. Para ele, é preciso despertar a vontade popular em esclarecer o passado. “Se a comissão não ganha confiança das vítimas, se não recebe as vítimas, será um fracasso”, alerta o sociólogo.

Ele cita uma pesquisa realizada no Peru, segundo a qual pouca gente estava informada sobre o que aconteceu no governo Fujimori e nos combates entre Estado e guerrilha. No entanto, a maior parte das pessoas ouvidas na pesquisa exigia que fosse feita justiça sobre os crimes não apurados no passado.

No Brasil, a procuradora federal Eugênia Gonzaga tem opinião diferente. Para ela, a comissão tem que pesquisar e investigar muito, apurar os fatos e obter farta documentação que comprove os depoimentos. “Não é o investigado que vai trazer a verdade. É a comissão que deve ser muito bem instituída, dotada de poderes especiais para poder abrir arquivos, notificar testemunhas e realizar um trabalho profícuo de investigação.”

Comissão da Verdade no mundo
Mais de 20 países criaram comissões da verdade para esclarecer crimes políticos na América do Sul, América Central, África e Ásia. Existe até mesmo uma comissão da verdade no Canadá, que apura o massacre da população indígena no passado.

É um instrumento relativamente recente que vem sendo usado desde a década de 70, com nomes diferentes. Uma comissão da verdade se baseia no direito à memória, ou seja, permitir através de pesquisa e investigação o conhecimento histórico de um período. Para isso, seus integrantes procuram meios para romper com o silêncio de forma a poder apurar os crimes do passado.

Peru
O que for apurado pela comissão pode ajudar a Justiça a responsabilizar criminalmente os envolvidos. Foi o que aconteceu em alguns países, como o Peru onde a comissão não tinha poder para punir, como também não terá a comissão brasileira. Mesmo assim, a comissão peruana encaminhou 74 casos de mortes apuradas como sendo brutais para que o Ministério Público decidisse se abriria ou não processo contra os criminosos.

De acordo com o sociólogo peruano Eduardo Cueva, foram casos como esses que levaram o Chile a extraditar o ex-presidente peruano Alberto Fujimori. Julgado no Peru, Fujimori cumpre na prisão sentença de 25 anos por crimes contra a humanidade.

Argentina
Como no Peru, a Comissão de Desaparecidos Políticos, criada nos anos 80 na Argentina, apurou crimes de agentes do Estado realizados durante a ditadura militar naquele país, uma das mais sangrentas da América do Sul nos anos 70. Essa apuração somada à pressão social permitiu que advogados questionassem a lei vigente.

“Esses fatos fizeram com que se desse muita força às iniciativas para anulação de leis como a Lei da Obediência Devida, leis muito parecidas com a Lei da Anistia no Brasil, e que se pudesse partir para processos contra os torturadores. Hoje, na Argentina, temos mais de duzentas pessoas sendo processadas e dezenas de pessoas presas por esses crimes”, explica a procuradora brasileira Eugênia Gonzaga.

África do Sul
Diferente de Peru e Argentina é a experiência da Comissão da Verdade da África do Sul, que apurou crimes no regime racista e excludente conhecido como apartheid. Lá o reconhecimento do crime pelo torturador foi “trocado” pela anistia. A descoberta do ato de violação evitava a punição criminal.

O professor da Universidade de São Paulo e jornalista Bernardo Kucinsky, irmão de Rosa, desaparecida política na ditadura militar brasileira, acompanhou o processo sul-africano. “Na África do Sul, chama-se Comissão da Verdade e da Reconciliação. Ali a comissão é pública, convoca as pessoas para um depoimento para examinar um determinado incidente, crime, morte ou tortura. Os agentes da época vêm e, se eles revelarem toda a verdade, passam a ser isentos de punição. Então, a condição para a anistia é a revelação da verdade. Por isso chama-se Comissão da Verdade e da Reconciliação. Aqui a nossa comissão não tem nada a ver com esse propósito. Não envolve a questão de punição ou não punição”, compara Kucinsky.

O professor de Direito da PUC do Rio Grande do Sul e consultor da Comissão da Anistia, José Carlos Moreira, diz que o governo democrático sul-africano preferiu evitar o caminho das ações penais num período de transição, o que poderia trazer sérios prejuízos para a nova sociedade que se formava.

“Ali houve uma violência generalizada, resultado do apartheid. Não apenas agentes governamentais, como vários grupos, estiveram envolvidos nessa violência. Lá a Comissão de Verdade e Reconciliação teve por objetivo transformar a ideia de anistia não na ideia de esquecimento, mas na ideia de memória. A anistia seria concedida àquelas pessoas que colaborassem na construção da verdade daquilo que passou. Por outro lado ele também não seguiu o caminho brasileiro que foi da anistia branca sem nenhuma depuração ou prestação de contas”, compara Moreira.

Os trabalhos da Comissão da Verdade na África do Sul foram televisionados para todo o país o que provocou forte impacto popular.

Realidades diferentes
O professor e advogado Miguel Reale Junior, que foi presidente da Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos, no governo Fernando Henrique Cardoso, ressalta que não há receita para o trabalho da comissão. A experiência de cada país reflete sua realidade.

“Não podemos fazer aqui um ponto de transposição. Cada país tem sua história, seu processo político e social. Não devemos fazer aqui cópias e nem comparações. Cada país tem suas características políticas próprias”, adverte Reale Junior.

No entanto, a procuradora federal Eugênia Gonzaga diz que exemplos de outros países não podem ser dispensados. “Esses países fizeram seu dever de casa. Eles estão fazendo o que é necessário para transição efetiva de um governo ditatorial para um governo democrático. E o Brasil é uma penosa exceção nesse cenário. Países menores tiveram comissões da verdade muito antes.”

Independente do modelo de trabalho adotado, todos os entrevistados acreditam que a Comissão da Verdade é uma oportunidade para o Brasil conhecer sua própria história. Porque um povo que não tem memória é um povo condenado a repetir os mesmos erros e as mesmas atrocidades do passado.

Reportagem - Eduardo Tramarim/Rádio Câmara
Edição – Natalia Doederlein

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